terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus - Parte IV



Temos ouvido os filósofos, que falam pela boca da natureza; ouçamos agora os santos padres, que falam pela da Igreja.

São Sidónio Apolinar, bispo arvernense e padre do V Século, escrevendo a Audaz, prefeito dos reis godos no tempo em que dominaram Itália, promete-lhe suas orações e conclui com estas palavras: Deum posco, ut te filii consequantur, et quod magis decet velle, transcendant: « Rogo a Deus por vós e por vossos filhos, diz o eloquentíssimo Padre, e o que peço para eles é que vos imitem; o que peco para vós é que vos excedam, porque vos imitem, porque isso é ~ que eles devem fazer; que vos excedam, porque isto é o que vós deveis desejar: Et quod magis decet velle, transcendant» .

Oh quisesse Deus que fossem hoje tais os pais, e tal a criação dos filhos, que por uns e outros lhes pudéssemos fazer esta oração! Mas é tanto pelo contrário que podemos chorar da nossa idade o que o outro gentio lamentava da sua: Æ tas parentum peior avis tulit nos nequiores, mox daturos progeniem vitiosiorem: « Os avós foram maus, os filhos são piores, os netos serão péssimos» . Haviam-se de prezar os pais, não só de ser bons, mas de dar tal criação aos filhos, que se pudessem gloriar de serem eles melhores. Mas deixadas estas lamentações, que não são para dia tão alegre, continuemos a ouvir os Santos Padres, e sejam os dois maiores da Igreja grega e latina __ Nazianzeno e Agostinho.

Faz duas elegantes epístolas S. Gregório Nazianzeno, uma a Nicóbulo, famoso letrado, em nome de um seu filho, em nome do mesmo Nicóbulo; e na primeira, pedindo o filho ao pai que lhe dê licença para frequentar as escolas e seguir as letras, diz assim: Gratia quam posco, genitor charissime, patris est mage, quam nati: « a graça que vos peço, pai meu, é mais para vós que para mim, e mais é vossa que minha» . Se isto dissera o moço, que ainda não tinha mais que o desejo de saber, não me admirara o dito; mas falando por boca dele o grande Nazianzeno, do qual com singular elogio elogia a Igreja, que em nenhuma cousa da que escreveu, errou; como pode ser que a glória do filho seja mais do pai que do mesmo filho: Patris est mage quam nati? E se esta preposição é verdadeira, segue-se dela, aplicada ao nosso intento, que a glória de Deus é mais de Maria que do mesmo Deus, porque Deus é filho e ela é Mãe. E porque não faça dúvida o falarmos da glória de um de outro, com a mesma palavra explica o santo Padre nas que logo acrescenta: Glória namque patris natorum est fama, decusque, ut rursus natis est glória fama parentum. Como pode ser logo neste caso, ou em algum outro, que a glória do filho seja mais do pai que do filho: Patris est mage, quam nati ?

Não há dúvida que falou nesta sentença Nazianzeno como quem tão altamente penetrava e distinguia a subtileza dos afectos humanos, entre os quais o amor paterno, como é o mais eficaz e muito forte, é também o mais fino. Diz que a glória do filho é glória do pai, que do mesmo filho; porque mais se gloriam os pais de a gozarem seus filhos ou de a gozarem neles, que se a gozaram em si mesmos. E neste sentido se pode dizer com verdade e propriedade natural que a glória de Deus em certo medo é mais de Maria que do mesmo Deus; porque, não sendo sua, como não é, é do filho ùnicamente seu, em quem ela mais estima, e da qual mais se gloria que se pudera ser, ou fora sua.

Isto é o que o disse Nazianzeno ao pai por boca do filho; vejamos agora o que diz e responde ao filho por boca do pai: Sis sane præ stantior ipse parente: Queres, filho, seguir-me na profissão e ser grande, como o mundo e a fama diz que sou, na ciência e nas letras? Sou contente; mas não me contento só com isso: o que peço a Deus é que « saias tão eminente nelas, que me faças grandes vantagens, e sejas muito maior que teu pai: « Sis sane præ stantior ipse parente» . Assim diz Nicóbulo, ou Nazianzeno por ele, e dá a razão tão própria no nosso caso, como se eu a dera: « Gaudet enim genitor, cum palmam præ ripit ipsi virtutis sua progenies: maiorque voluptas hinc oritur, quam si reliquos præ verteret omnes: Desejo, filho, que sejas maior que eu; porque « não há gosto para um pai, como ver que seu filho lhe leva a palma, e de se ver assim vencido dele, se gloria muito mais que se vencera, e se avantajara a todos quantos houve no Mundo» .

Mudai, agora o nome de Genitor em Genitrix, e entendei que falou Nazianzeno da glória de Maria no Céu, onde tão gloriosamente se vê vencida da glória de seu Filho: Gaudet enim Genitrix, cum palmam præ ripit virtutis sua progenies. Vê-se Maria, quando vê a Deus, infinitamente vencida da imensidade de sua glória; mas como é glória, não de outrem, senão de seu Filho: Sua progenies, o ver-se vencida dele é a sua vitória e a sua palma: Cum palmam præ ripit ipsi. Nas outras contendas a palma é do vencedor, mas quando contende o filho com o pai ou com a mãe, a palma é do pai ou da mãe vencida; porque a sua maior glória é ter um filho que a vença nela.

Este dia da Senhora da Glória chama-se também da Senhora da Palma; porque, como é tradição dos que assistiram a seu glorioso trânsito, o anjo embaixador de seu Filho, que lhe trouxe a alegre nova, lhe meteu juntamente na mão uma palma, com a qual, como vencedora da Morte e do Mundo, entre as aclamações e vivas de toda a corte beata, entrasse triunfante no Céu. Subi, Senhora, subi, subi ao trono da glória que vos está aparelhado sobre todas as jerarquias, que lá vos espera outra palma infinitamente mais gloriosa. E que palma? Não aquela com que venceis em glória a todos os espíritos bem-aventurados, senão aquela com que na mesma glória sois vencida de vosso filho: Cum palmam præ ripit ipse sua progenies. Grande glória da Senhora é, como lhe canta a Igreja, ver-se exaltada no Céu sobre todos os coros e jerarquias dos espíritos angélicos; grande glória que os principados e potestades que os querubins e serafins lhe ficam muito abaixo, e que no lugar, na dignidade, na honra, na glória excede incomparàvelmente a todos; porém o ver que neste mesmo excesso de glória é excedida infinitamente de seu Filho; isso é o de que naquele mar imenso de glória mais se gloria, isto é o de que naquele verdadeiro paraíso dos deleites eternos mais a deleita: Maiorque voluptas hinc oritur, quam si reliquos præ verteret omnes.

Mas ouçamos já a Agostinho, que mais subtilmente ainda penetrou os efeitos e causas desta tão verdadeira, como racional complacência. Escreve Santo Agostinho em seu nome e no de Elvídio a Juliana, mãe da virgem Demetríade, bem celebrada nas epístolas de S. Jerónimo; e porque esta senhora romana de nobreza consular, desprezadas as grandezas, riquezas e pompas do Mundo, se tinha dedicado toda a Deus no estado mais sublime da perfeição evangélica, dá o parabém Agostinho à mãe com estas ponderosas palavras: Te volentem, gaudentemque vincit: genere ex te, honore supra te: in qua etiam tuum esse cæ pit, quod in te esse non potuit: « Vossa filha Demetríade, ó Juliana, vence-vos, sim, na alteza do estado, a que a vedes sublimada; mas muito por vossa, vontade e muito por vosso gosto vos vence» : Volentem, gaudentemque vincit; « porque é filha vossa aquela de quem vos vedes vencida» : Genere ex te, honore supra te. « A honra que goza é muito sobre vós, mas como a geração que tem é de vós, também esta mesma honra é vossa; porque o que não podeis ter, nem alcançar em vós e por vós, já o tendes e gozais nela por ser vossa filha»: In qua etiam tuum esse cæ pit, quod in te esse non potuit. Vai por adiante Agostinho, ainda com mais profundo pensamento: Illa carnaliter non nupsit ut non tantum sibi, sed etiam tibi, ultra te, spiritualiter augeretur, quoniam tu ea compensatione minor illa es, quod ita nupsisti, ut nasceretur: « Demetríade, vossa filha, é maior que vós, e vós menor que ela; mas se ela vos excedeu a vós no que tem de maior, não vos excedeu só para si, senão também para vós; porque esse excesso se compensa com nascer de vós: Non tantum sibi, sed etiam tibi, ultra te, ea compensatione ut nasceretur.

Em uma só cousa não vem própria a semelhança, porque Maria pode ser Mãe como Juliana e Virgem juntamente como Demetríade; mas em tudo o mais especulou e ponderou a agudeza de Agostinho, quanto se pode dizer no nosso caso.

Te volentem, gaudentemque vincit. « Venceu-nos vosso Filho na glória, Virgem Mãe, mas muito por vossa vontade e por vosso gosto» ; porque « esse mesmo excesso de glória por ser sua, é o que mais quereis e de que mais vos gozais»: Genere ex te, honore supra te. A sua honra, a sua grandeza, a sua majestade, a sua glória imensa e infinita, é muito sobre vós, porque ele é Deus, e vós criatura: Honore supra te; mas a geração desse mesmo Deus, que é tanto sobre vós, é de vós: Genere ex te. E que se segue de aqui? Segue-se que « tendes o que não podíeis ter, e que toda a glória sua, começa também a ser vossa» : Etiam tuum esse cæ piet, quod in te esse non potuit. Vós não podíeis ser Deus, mas como Deus pode fazer que fôsseis sua Mãe, tudo o que não podíeis ter em vós, tendes nele. Ele é maior que vós, e vós menor: Minor est: mas tudo o que tem de maior, (que é tudo) « não só o tem para si senão também para vós»: Non tantum sibi, sed tibi, ultra te.

Oh quem pudera declarar dignamente a união destes termos, ultra te et tibi! Enquanto a glória de Deus é infinita e imensa, estende-se muito «além de vós»: Ultra te; mas em quanto é glória de vosso Filho, toda se contrai e reflecte a vós: Tibi. Para os raios do sol fazerem reflexão, é necessário que tenham limite onde parem; mas a glória da Divindade de vosso Filho, que não tem nem pode ter limite, por isso se limitou à Humanidade que recebeu de vós, para reflectir sobre vós, nascendo de vós: Ea compensatione, ut nasceretur. E chama-se este nascer de vós compensação ou recompensa com que Deus vos compensou toda a grandeza e glória, que tem mais que vós; porque, nascendo de vós, é vosso verdadeiro Filho; e sendo toda essa glória de vosso Filho, também é vossa, e vossa naquela parte onde a tendes por melhor: Optimam partem elegit.

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