terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus - Parte V



Parece que não podia falar mais concordemente ao nosso intento, nem a filosofia dos Gentios, nem a teologia dos Santos Padres. Vejamos agora o que dizem as Escrituras Sagradas.

O primeiro exemplo que elas nos oferecem, é o famoso do Barcelay. No tempo em que Absalão se rebelou contra David, (que tão mal pagam os filhos a seus pais o amor que lhes devem) um dos senhores que seguiram as partes do rei foi este Barcelay, o qual o assistiu sempre tão liberal e poderosamente, que ele só, como refere o texto, lhe sustentava os arraiais. Restituído pois David à coroa e lembrado deste serviço ou gentileza, de que outros príncipes se esquecem com a mudança da fortuna, qui-lo ter junto a si na corte e fazer-lhe a mercê e honra que sua fidelidade merecia; e para o vencer na liberalidade ou não ser vencido dele, disse-lhe que ele mesmo se despachasse, porque « tudo quanto quisesse lhe concederia» : Quidquid tibi placuerit, quod petieris a me, impetrabis. Generoso rei! Venturoso vassalo! Mas para quem vos parece que quereria toda esta ventura? Era Barcelay pai, tinha um filho que se chamava Caimam, escusou-se de aceitar o lugar e mercê que o rei lhe oferecia, e o que só lhe pediu foi que a fizesse a seu filho: Est servus tuus Caimam, ipse vadat tecum, et fac ei quidquid tibi bonum videtur.

Dirão os que têm lido esta história, que se escusou Barcelay porque se via carregado de anos, como ele mesmo disse; mas isso só foi um desvio e modo de não aceitar cortêsmente, e não é razão que satisfaça, pois vemos tantas velhices decrépitas, tão enfeitiçadas das paredes de palácio, que, tropeçando nas escadas, sem vista e sem respiração, as sobem todos os dias, bem esquecidos dos que lhes restam de vida. E quando Barcelay não fosse tocado deste contágio, ao menos podia dividir a mercê entre si e o filho, e aparecerem ambos na corte, como vemos muitos títulos com duas caras (a modo do Deu), uma com muitas cãs e outra sem barba. Mas a verdadeira razão por que este honrado pai não aceitou a mercê do rei para si e a pediu para seu filho, nem a dividiu entre ambos, podendo, pois estava na sua eleição, foi (como dizem literalmente Lira e Abulense) porque era pai, e entendeu que tanto lograva aquela honra em seu filho, como em si mesmo, porque nele era mais sua, como acima disse S. Gregório Nazianzeno. E porque o santo não deu a razão da sua sentença, nós a daremos e provaremos agora como outro mais notável exemplo da Escritura.

Quando Abraão sacrificou seu filho Isaac, é cousa mui notável e mui notada que, sendo Isaac a vítima do sacrifício, os louvores desta ação e desta obediência, todos se dêem a Abraão e não a Isaac. Isaac, não se ofereceu com grande prontidão ao sacrifício? Não se deixou atar? Não se inclinou sobre o altar e se lançou sobre a lenha? Não viu sem horror desembainhar a espada? Não aguardou sem resistência o golpe? Que mais fez logo Abraão, para que a obediência de Isaac se passe em silêncio e a de Abraão se estime, se louve, se encareça com tanto excesso? Nenhuma diferença houve no caso, senão ser Abraão pai e Isaac filho. Amava Abraão mais a vida de Isaac que a sua, e vivia mais nela que Em si mesmo; e posto que ambos sacrificaram a vida e a mesma vida, o sacrifício de Abraão foi maior e mais heróico que o de Isaac, porque se Isaac sacrificou a sua vida, Abraão sacrificou a vida que era mais que sua, porque era de seu filho.

Atèqui está dito e bem dito; mas eu passo àvante e noto o que, a meu ver, é digno ainda de maior reparo: Premiou Deus esta famosa ação de Abraão, e como a premiou, e em quem? Não a premiou no mesmo Abraão, senão em Isaac: Quia fecist rem hanc, benedicentur in semine tuo omnes gentes: in Isaac vocabitur tibi semem. Pois se a ação do sacrifício foi celebrada em Abraão e não em Isaac, porque foi premiada em Isaac e não em Abraão? __ Por isso mesmo. A ação foi celebrada em Abraão e não em Isaac, porque Isaac sacrificou a sua vida e Abraão sacrificou a vida que estimava mais que a sua, porque era de seu filho; e da mesma maneira foi premiada em Isaac e não em Abraão, para que o prémio, sendo de seu filho, fosse também mais estimado dele do que se fora seu. A vida que sacrificastes era mais que vossa, porque era de vosso filho? Pois seja o prémio também de vosso filho, para que seja mais que vosso. E como os pais estimam mais os bens dos filhos que os seus próprios, e os logram e gozam mais neles que em si mesmos, vede se escolheria ou quereria a Senhora a imensa glória de seu Filho antes para ele que para si, se a terá por sua e mais que sua, e se as mesmas vantagens de glória, em que infinitamente se vê excedida., serão as que mais gloriosa a fazem e de que mais se gloria!

O mesmo Filho de Maria, por ser Filho seu, se chama também Filho de David; e na história do mesmo David nos dá a Escritura Sagrada o maior e mais universal testemunho, que para prova desta verdade, se pode desejar nem ainda inventar. Chegado David ao fim da vida, quis nomear sucessor do reino, e mandou ungir a seu filho Salomão por rei. Deu esta ordem a Banaias, capitão dos guardas da pessoa real, o qual lhe beijou a mão pela eleição, que não era pouco controversa, e o cumprimento com que falou ao rei, foi este: Quomodo fuit Dominus cum Domino meo rege, sic sit cum Salomone, et sublimius faciat solium ejus a solio Domini mei regis David: « Assim como Deus assistiu sempre e favoreceu a Vossa Majestade, assim assista e favoreça o reinado de Salomão, e sublime e exalte o seu trono muito mais que o trono de Vossa Majestade» . Executou-se prontamente a ordem, ungirarn a Salomão no monte Gion com todas as cerimónias que então se usavam em semelhante celebridade; entrou o novo rei por Jerusalém a cavalo, com trombetas e atabales diante, entre vivas e aclamações de todo o povo e exército; vieram todos os príncipes e ministros maiores dos doze tribos congratular-se com David, e as palavras com que lhe deram o parabém, foram outra vez as mesmas: Amplificet Deus nomen Salomonis super nomen tuum, et magnificet thronum ejus super thronum tuum: « Seja maior o maior o nome de Salomão, Senhor, que o vosso nome, e mais alto e glorioso o seu trono, do que foi o vosso.

O que me admira sobretudo neste caso, é que todos dissessem a mesma cousa. Estas são as ocasiões em que a discrição, o engenho e a cortesania dos que dão o parabém aos reis, se esmera em buscar cada um novos modos de congratulação, novos motivos de alegria, e ainda novos conceitos de lisonja, e mais os que fazem a fala em nome dos seus tribunais ou repúblicas. Como logo em tantos tribos, tantos ministros, tantos príncipes e senhores, (que, como diz o texto, vieram todos) não houve quem falasse por outro estilo, nem dissesse outra cousa a David, senão que Deus fizesse a seu filho maior que ele e sublimasse e exaltasse o trono de Salomão, mais que o seu trono? Isto disseram todos. porque a um rei tão famoso e glorioso corno David, nenhuma outra felicidade nem glória lhe restava para desejar, senão que tivesse um filho que em tudo se lhe avantajasse e o excedesse, e que o trono do mesmo filho fosse muito mais levantado e sublimado que o seu. A David, em quanto David, bas- tava-lhe por glória ter sido David; mas em quanto pai, não lhe bastava. Ainda lhe restava outra maior glória que desejar, e esta era ter um tal filho, que na majestade, na grandeza, na glória e no mesmo trono, o vencesse e excedesse muito: Et magnificet thronum ejus super thronum tuum.

Dois tronos há no Céu mais sublimes que todos: o de Deus e o de sua Mãe; o de Deus infinitamente mais alto que o de sua Mãe, e o de sua Mãe infinitamente mais alto que o de todas as criaturas. Mas a maior glória. de Maria, não consiste em que o seu trono exceda o de todas as jerarquias criadas, senão em ter um Filho cujo trono exceda infinitamemte o. Este é o parabém que no Céu lhe estão dando hoje e lhe darão por toda a, eternidade todos os espíritos bem-aventurados, sem haver em todos os coros de homens e anjos quem diga nem possa. dizer outra cousa, senão: Thronus ejus super thronum tuum. Vence Maria no Céu a. todas as Virgens, na glória que se deve à pureza.; a todos os confessores, na que se deve à humildade; a todos os mártires, na que se deve à paciência; todos os apóstolos, patriarcas e profetas, na que se deve à Fé, à Religião, ao zelo e culto da honra de Deus. Mas assim os confessores como as virgens, assim os mártires como os apóstolos, assim os patriarcas como os profetas, deixadas todas essas prerrogativas em que gloriosamente se vêem vencidos, os louvores e euges eternos com que exaltam a Gloriosíssima Mãe, é ser inferior o seu trono ao de seu Filho: Thronus ejus super thronum tuum. Vence Maria a todos os, anjos e arcanjos, a todos os principados e potestades, a todos os querubins e serafins, na virtude, no poder, na ciência, no amor, na graça, na glória. Mas todos estes espíritos angélicos, passando em silêncio os outros dons sobrenaturais que tocam a cada urna das jerarquias, em que veneram e reconhecem a soberana superioridade com que a Senhora, como rainha de todas, incomparàvelmente as excede; todos, como tão discretos e entendidos o que só dizem e sabem dizer; o que sobre tudo admiram e apregoam, é: Thronus ejus super thronum tuum. Assim que, homens e anjos, unidos no mesmo conceito e enlevados no mesmo pensamento, o que cantam, o que louvam, o que celebram, prostrados diante do trono da segunda Majestade da Glória, e os vivas que lhe dão concordemente, é ser Mãe de um Filho que, excedendo ela a todos em tão sublime grau na mesma glória, ele a vence e excede infinitamente. E isto é o que, divididos em dois coros de inumeráveis vozes e unidos em urna só voz, aplaudem, aclamam, festejam, e tudo o mais calam, conformando-se nesta eleição com a parte da mesma glória que a Senhora elegeu por melhor: Optimam partem. elegit.


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