terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus - Parte III



Comecemos pelos filósofos. Põe em questão Séneca e disputa subtilìssimamente no Livro III dos cinco que intitulou De Beneficiis, se pode um filho vencer em algum benefício a seu pai? A razão de duvidar é porque o primeiro e maior benefício é o ser, e havendo o pai dado o ser ao filho, o filho não pode dar o ser a seu pai. Mas esta diferença não tem lugar no nosso caso, porque falamos de um Pai, e de uma Filha, em. que o Pai é juntamente Pai e Filho da mesma Mãe e a Mãe é juntamente Mãe e Filha do mesmo Pai. Abstraindo, porém deste impossível da natureza, que os filósofos gentios não conheceram, resolve o mesmo Séneca que bem pode um filho vencer no maior benefício a seu pai, e o prova com o exemplo de Eneias, o qual, por meio das lanças dos Gregos e do incêndio e labaredas de Tróia, levando sobre seus ombros ao velho Anquises, deu mais heròicamente a vida a seu pai do que dele a recebera . À vista deste famoso espectáculo de valor e de piedade, não há dúvida que venceu o filho ao pai. Mas qual foi então mais glorioso: o filho vencedor ou o pai vencido? A este exemplo ajunta o mesmo filósofo o de Antíloco e de outros que deram a seus pais mais ainda que o ser e a vida que lhes deviam, e conclui assim: Felices qui vicerint, felices qui vincentur: quid autem est felicius quam sic cedere? Quando os filhos vencem aos pais e se ostentam maiores que eles, « felizes são os que vencem e felizes os vencidos; mas muito mais felizes os pais vencidos que os filhos vencedores, porque não pode haver maior gosto, nem maior glória para um pai, que ver-se vencido de seu filho.» Grande glória é do filho que vença ao pai, que lhe deu o ser; mas muito maior glória é do mesmo pai, ver que deu o ser a um tal filho que o vença a ele.

Isto que disse Séneca, falando dos benefícios, corre igualmente, e muito mais em todas as outras acções ou grandezas, em que os pais se vêem vencidos dos filhos. Ouçamos a. outro filósofo, que: melhor ainda que Séneca, conheceu os afetos naturais, e não só em mais harmonioso estilo, mas com mais profunda especulação que todos, penetrou a anatomia do coração humano.

Faz paralelo Ovídio entre os dois primeiros Césares, Júlio e Augusto, aquele pai, e este filho; e depois de assentar que « a maior obra de Júlio César foi ter um tal filho como Augusto: Nec enim de Cæ saris actis ullum maius opus, quam quod pater extitit hujus, supõe com a comum opinião de Roma, que um cometa que na morte de Júlio César apareceu, era a alma do mesmo Júlio colocada entre os deuses como um deles. E no meio daquela imaginada bem-aventurança, qual vos parece que seria a maior glória de um homem que nesta vida tinha logrado todas as que pode dar o Mundo? __ Diz o mesmo Ovídio, (tão falso na. suposição como poeta, mas tão certo no discurso como filósofo) que o que fazia lá de cima. Júlio César era olhar para sen filho Augusto, e que, « considerando as grandezas do mesmo filho e reconhecendo e confessando que eram maiores que ar suas, o seu maior gosto e a sua maior glória era ver-se vencido dele» : Natique videns benefacta, fatetur esse suis maiora, et vinci gaudet ab illo.

Ah Virgem gloriosíssima, no Céu estais verdadeiramente, como crê e adora a nossa Fé, mas nas sombras escuras e falsas deste fabuloso pensamento, que consideração haverá que não reconheça quais são lá os mais intensos afectos e as maiores glórias do vosso? Estais vendo e contemplando, como em um espelho claríssimo, o infinito ser, os infinitos atributos, a infinita e imensa majestade de vosso Unigénito Filho; conheceis e « confessais que as suas grandezas excedem, e são também infinitamente maiores que as vossas» : Fatetur esse suis maiora; mas a mesma evidência de que vosso Filho vos vence e excede na glória, é a melhor parte da mesma glória vossa, e a de que mais vós gozais e gozareis eternamente com ele: Et vinci gaudet ab illo.

Quem pudera imaginar que Júlio César, vencedor de Cipião e de Pompeu __ e de tantos outros capitães famosos, que junto a estes perdem o nome __ triunfador da África, do Egipto, das Gálias e das Espanhas e da mesma Roma; aquele enfim, de tão altivo coração que ninguém sofreu lhe fosse superior ou igual no Mundo; quem pudera imaginar, digo, que havia de gostar e gloriar-se de ser vencido de outro? Mas como Augusto que o vencia era filho seu, o ser vencido dele era a sua maior vitória, este o maior triunfo de seus triunfos, esta a maior glória de suas glórias: Et vinci gaudet ab illo.

Mas porque neste exemplo nos não fique o escrúpulo de ser adulação poética, posto que tão conforme ao afecto natural, confirmemo-lo com testemunho histórico e verdadeiro, em nada menor que passado, e porventura mais notável.

Celebra Plutarco, tão insigne historiador como filósofo, o grande extremo com que Filipe, rei de Macedónia, amava a seu filho Alexandre, já digno do nome de Grande em seus primeiros anos, pela índole e generosidade real que em todos seus pensamentos, ditos e ações resplandecia. E para prova deste extremado afecto, refere uma experiência que nos vassalos pudera ser tão arriscada, como do rei mal recebida, se o amor de pai a filho a não interpretara de outra sorte. Foi o caso que os Macedónios, sem embargo da fé que deviam a Filipe, pùblicamente chamavam a Alexandre o rei e a Filipe o capitão. Mas como castigaria Filipe este agravo? __ Não há ciúmes mais impacientes, mais precipitados e mais vingativos que os que tocam no ceptro e na coroa. Apenas tem havido púrpura antiga nem moderna, que por leves suspeitas neste género se não tingisse em sangue. E que sofra Filipe, aquele que tanto tinha dilatado o império de Macedónia, que seus próprios vassalos em sua vida, e em sua presença lhe tirem o nome de rei e o dêem a Alexandre!

Muito fora que o sofresse, mas muito mais foi, que não só o sofria., senão que o estimava e se gloriava muito disso. Ouvi a Plutarco: Hinc filium non immerito Philippus dilexit, ut etiam gauderet, cum Alexandrum Macedones regem, Philippum appellarent Ducem. Era Filipe pai e Alexandre filho, e tão fora estava o pai de sentir que lhe antepusessem o filho, que antes o tinha por lisonja e glória, e esse era o seu maior gosto: Ut etiam gauderet. quando lhe tiravam a coroa para a darem a. seu filho, então se tinha Filipe por mais coroado; quando já faziam a Alexandre herdeiro do reino, antes de lhe esperarem pela morte, então se tinha por imortal; quando o apelidavam com menor nome, então se tinha por maior. E quando lhe diziam que ele só era capitão, então aceitava esta gloriosa injúria, como os vivas e aplausos da mais ilustre vitória; porque a maior glória de um pai é ser vencido de seu filho: Et vinci gaudet ab illo.

A razão e filosofia natural deste afecto é porque ao maior desejo, quando se consegue, segue-se naturalmente o maior gosto; e o maior desejo que têm e devem ter os pais, é serem tais seus filhos, que não só os igualem, mas os vençam e excedam a eles. Assim o disse ou cantou ao Imperador Teodósio Claudiano, tão insigne na filosofia como na poética. Descreve copiosamente as virtudes imperiais, militares e políticas com que seu filho Honório se adiantava admiràvelmente aos anos, e não só igualava, mas excedia a seu pai; e fazendo uma apóstrofe a Teodósio, lhe diz confiadamente assim: Aspice nunc quacumque micas, seu circulus austri, magne parens, gelidi seu te meruere Triones, aspice, completur votum, jam natus adæ quat te meritis, et quod magis est optabile, vincit: « De lá onde como estrela, de Marte ilustrais o Mundo com vossas vitórias, ou seja no círculo do astro, ou no frio Setentrião, olhai, felicíssimo César, para Honório vosso filho, e se como imperador tendes conseguido o nome de Grande, chamando-vos a voz pública Teodósio o Magno, a minha (diz Claudiano) não vos invoca com o nome de grande imperador, senão com o de grande pai: Magne parens; e o que celebro mais entre todas as glórias de vossa felicidade e o que tenho por mais digno do emprego de vossa vista, é que vejais e torneis a ver: Aspice, aspice; que chegastes a ter um filho, o qual não só vos iguala, que é o que desejam os pais, mas que já vos excede e vence, que é o que mais devem desejar: Et quod magis est optabile, vincit» .

Notai muito as palavras: Quod magis est optabile, e aplicai-as ao nosso caso. O que mais se deve desejar é o melhor que se pode escolher; e como o que mais devem desejar os pais é que os filhos os vençam e os excedam, bem se conclui que, se entre a glória de Deus e a de sua Mãe fora a escolha da mesma Mãe, o que a Senhora havia de escolher para si é que seu Filho a excedesse e vencesse na mesma Gloria, como verdadeiramente a excede e vence: Et quod magis est optabile, vincit. Vence Deus incomparàvelmente a sua Mãe na glória infinita que goza, mas como este mesmo excesso é o mais que Maria podia desejar e o melhor que devia escolher como Mãe, por isso se diz com razão que Maria escolheu hoje a melhor parte: Maria optimam partem elegit.

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