terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus - Parte VI



E porque a preferência desta eleição não fique só no juízo dos entendimentos criados, subamos aos arcanos do entendimento divino, e vejamos como o Eterno Pai, em tudo o que teve liberdade para eleger e escolher, também escolheu esta parte e a teve por melhor.

Para inteligência. deste ponto havemos de supor que tudo quanto tem e goza, o Filho de Deus o recebeu de seu Padre, mas por diferente modo. O que pertence à natureza e atributos divinos recebeu o Verbo Eterno do Eterno Padre, não por eleição e vontade livre do mesmo Padre, senão natural e necessàriamente. E a razão é porque a geração do Divino Verbo procede por acto do entendimento, antecedente a todo acto da vontade. sem o qual não há eleição. É verdade que, ainda que a geração do Verbo não procede por vontade nem é voluntária, nem por isso é involuntária ou contra vontade. E daqui se ficará entendendo a energia e propriedade daquelas dificultosas palavras de S. Paulo, onde diz: que a igualdade que o Filho tem com o Padre na natureza e atributos divinos, não foi furto, nem o mesmo Verbo o reputou por tal: Non rapinam arbitratus est esse se æ qualem Deo. E porque declarou S. Paulo o modo da geração do Verbo pela semelhança ou metáfora do furto, dizendo que não foi furto, nem como furtado ou roubado o que recebeu do Padre? __Divinamente, por certo, e não se podia declarar melhor. O furto é aquilo que se toma ou se retém e possui, invito domino __ « contra vontade de seu dono. E a Divindade que o Verbo recebeu do Padre, ainda que da parte do mesmo Padre não fosse voluntária, contudo não foi invita; não foi voluntária, sim, mas não foi contra vontade. E como o Padre não foi invito na geração do Verbo e na comunicação da sua Divindade (posto que fosse necessária e não livre, por isso a igualdade que o Verbo tem com ele, é verdadeiramente sua e não roubada: Non rapinam arbitratus est esse se æ qualem Deo.

Atèqui o que o Filho recebeu do Padre necessariamente, e sem eleição sua. E que é o que recebeu por vontade livre e por verdadeira e própria eleição? __ O que logo se segue e acrescentou o mesmo S. Paulo: Sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo, propter quod et Deus exaltavit illum et donavit illi nomen, quod est super omne nomen: Recebeu o Filho do Padre; por verdadeira e própria eleição, o ofício e dignidade de Redentor do género humano, « fazendo-se juntamente homem, e com esta nova e inefável dignidade recebeu um nome sobre todo nome» , que é o nome: de Jesus, mais sublime e mais venerável, pelo que é e pelo que significa, que o mesmo nome de Deus: Ut in nomine Jesus omne genu flectatur. Recebeu a potestade judiciária que o Padre demitiu de si, « competindo ao Filho privativamente o juízo universal e particular de vivos e mortos» : Pater non judicat quemquam, sed omne judicium dedit filio. Recebeu o primeiro trono entre as três Pessoas da Santíssima Trindade, assentando-se à mão direita do mesmo Padre: Dixit Dominus Domino meo: sede a dextris meis. Tudo isto, e o que disto se segue, com imensa exaltação e glória recebeu o Filho de seu de seu Eterno Padre, por vontade livre e própria eleição.

Mas se toda esta nova exaltação e toda esta nova glória não era devida à Pessoa do Filho por força ou direito da geração eterna, em que sòmente era igual ao Padre na natureza e atributos divinos, e a eleição livre de dar ou tomar a mesma exaltação e glória estava e dependia da vontade do mesmo Padre, porque a não tomou para si? Assim como encarnou a Pessoa do Filho, assim pudera encarnar a Pessoa do Padre; e no tal caso a nova dignidade de Redentor, o nome sobre todo o nome, a maior veneração e adoração de homens e anjos, e todas as outras prerrogativas e glórias que pelo mistério da Encarnação e Redenção sobrevieram e acresceram ao Filho, não haviam de ser do Filho, senão do mesmo Padre. Pois se a eleição voluntária e livre de tudo isso estava na mão do Padre e podia tomar para si toda essa exaltação e glória; porque; a quis antes para a Pessoa do Filho? Por nenhuma outra razão, senão porque era Filho e ele Pai: Ego autem constitutus sum rex ab eo super Sion montem sanctum ejus. Dominus dixit ad me: Filius meus es tu. Assim como o Eterno Padre, para encarecer o amor que tinha aos homens, não se nos deu a si, senão a seu Filho: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum Unigenitum daret; assim para manifestar o amor que tinha ao mesmo Filho, não tomou para si estas novas glórias, senão que todas as quis para ele e lhas deu a ele, entendendo que, quando fossem de seu Filho, então eram mais suas, e que mais e melhor as gozava nele que em si mesmo.

E que Filho é este, Virgem Gloriosíssima, senão o mesmo Filho vosso, Filho Unigénito do Eterno Padre e Filho Unigénito de Maria? E se o Eterno Padre, em tudo o que pode ter eleição própria., escolheu os excessos de sua glória para seu Filho, essa mesma glória, que ele goza em si e vós nele, em que infinitamente vos vedes excedida, quem pode duvidar, se tem inteiro juízo, que seria também vossa a mesma eleição? Toda a Igreja Triunfante no Céu e toda a Militante na Terra, reconhece e confessa que entre todas as puras criaturas, ou sobre todas elas, nenhuma há mais parecida a Deus Padre, que aquela singularíssima Senhora, que ele criou e predestinou ab æ terno para Mãe do seu Unigénito Filho; porque era justo que o Pai e a Mãe de quem ele recebeu as duas naturezas de que inefàvelmente é composto, fossem, quanto era possível, em tudo semelhantes. E se o amor do Pai, por ser amor de Pai, e Pai sem Mãe, escolheu para seu Filho e não para si as glórias que cabiam na sua eleição, não há dúvida que o amor da Mãe, e Mãe sem Pai, escolheria para o mesmo Filho também, e não para si, toda a glória infinita que ele goza. E esta é a eleição que teria por melhor: Maria optimam partem elegit.

Assim o entendeu da mesma Mãe o mesmo Pai; e o provou maravilhosamente o juízo e amor da mesma Senhora para com seu Filho, onde a eleição foi pròpriamente sua. Quando o Eterno Padre quis dar Mãe a seu Unigénito, foi com tal miramento e atenção à grandeza e majestade da que sublimava a tão estreito e soberano parentesco, que não só quis que fosse sua, isto é, do mesmo Pai, a eleição da Mãe, senão que também fosse da Mãe a eleição do Filho. Bem pudera o Eterno Padre formar a Humanidade de seu Filho nas entranhas puríssimas da Virgem Maria, sem consentimento nem ainda conhecimento da mesma Virgem, assim como formou a Eva da costa de Adão, não acordado e estando em si, senão dormindo. Mas para que o Filho que havia de ser seu, posto que era Deus, não só fosse seu, senão da sua eleição, por isso (como diz S. Tomás) lhe destinou antes por embaixador um dos maiores príncipes da sua corte, o qual de sua parte lhe pedisse o sim e negociasse e alcançasse o consentimento, e o aceitasse em seu nome. Este foi, como lhe chamou São Paulo, o maior negócio que nunca houve nem haverá entre o Céu e a Terra, dificultado primeiro pela Senhora, e depois persuadido e concluído por S. Gabriel. Mas quais foram as razões e os motivos de que usou o anjo para o persuadir e concluir? __ É caso digno de admiração, e que singularmente prova da parte de Deus, do anjo e da, mesma Virgem, qual é na sua eleição a melhor parte.

Repara Maria na embaixada, insta o célebre embaixador, e as promessas que alegou para conseguir o consentimento, foram estas: Ecce concipies et paries Filium, et vocabis nomem ejus Jesum; hic erit magnus, et Filius Altissimi vocabitur; dabit illi Dominus Deus sedem David patris ejus, et regnabit, in domo Jacob, et regni ejus non erit finis: « O filho de que sereis Mãe, terá por nome Jesus, que quer dizer, o Redentor do Mundo; este será grande, chamar-se-á Filho de Deus, dar-lhe-á o mesmo Deus o trono de David seu pai; reinará em toda a casa de Jacob; e seu reino e império não terá fim» .

Não sei se advertis no que diz o anjo e no que não diz; no que promete e no que não promete. Tudo o que promete, são grandezas, altezas e glórias do Filho; e da Mãe, com quem fala, nenhuma cousa diz; e à mesma a quem pretende persuadir nada lhe promete. Não pudera Gabriel dizer à Senhora com a mesma verdade, que ela seria a florescente vara de Jessé; que nela ressuscitaria o ceptro de David; que a sua casa se levantaria, e estenderia mais que a de Jacob; que seria rainha sua e de todas as jerarquias dos anjos, Senhora dos homens, Imperatriz de todo o criado; e que esta majestade e grandeza também a lograria sem fim? __Tudo isto, e muito mais, podia e sabia dizer o anjo. Pois porque diz e promete só o que há-de ser o Filho, e não diz nem promete o que há-de ser a Mãe? Porque falou como anjo, conforme a sua ciência; e como embaixador, conforme as suas instruções; por isso, nem ele diz, nem Deus lhe manda dizer senão o que há-de ser seu Filho; porque nas matérias onde Maria tem a eleição livre, o que mais pesa no seu juízo e o que mais move e enche o seu afecto, são as grandezas e glórias de seu Filho e não as suas. As de seu Filho, e não as suas, porque as tem mais por suas, sendo de seu Filho; as de seu Filho e não as suas, porque as estima mais nele e as goza mais nele que em si mesma.

Isto é o que, segundo o conhecimento de Deus, e o do anjo, e o seu, elegeu Maria, na terra; e isto é o que na presença de Deus, dos anjos e de todas os bem-aventurados tem por melhor no Céu: Maria optimam partem elegit.


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